A exclusão por uma lesão fiscal irrisória não deve ser considerada juridicamente válida.

Como forma de garantir o cumprimento do comando previsto no art. 179 da Constituição, que estabelece o tratamento jurídico diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte, visando à incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, o legislador editou a Lei Complementar nº 123/06, que oportuniza aos contribuintes de menor porte o direito de optar pelo tratamento tributário diferenciado e favorecido denominado Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições, ou simplesmente “Simples Nacional”.

Como sabemos, a realidade das pequenas empresas brasileiras não lhes possibilita investimento suficiente em mão de obra especializada para a adoção de um compliancefiscal adequado, o que resulta no inevitável descumprimento de obrigações tributárias e, consequentemente, no surgimento de débitos que passam a ser prontamente exigíveis.

Apesar do Simples Nacional ter sido instituído com o nobre propósito de alterar esse cenário, a realidade é que nem mesmo os contribuintes que estão inclusos no Regime escapam de um sistema tributário complexo, como revelou artigo publicado recentemente neste veículo[1].

Ocorre que, apesar de ser esperado que sociedades empresárias de menor porte acumulem pequenos débitos de natureza tributária ao longo de sua existência, o art. 17, V, da Lei Complementar nº 123/06 condiciona a manutenção de tais contribuintes no Regime do Simples Nacional à inexistência de débitos perante a Receita Federal do Brasil.

E, para piorar, o art. 30 daquele mesmo Diploma ainda determina a exclusão do Regime dos contribuintes que possuam débitos tributários cuja exigibilidade não esteja suspensa, sem, contudo, estabelecer um valor mínimo do total da dívida que daria ensejo à aplicação dessa penalidade.

Acreditamos, no entanto, que uma medida tão extrema como a exclusão do Regime do Simples Nacional, especialmente diante de um contexto tão complexo de cumprimento tempestivo de obrigações tributárias, não pode ser aplicada isoladamente pela Administração Fazendária, sob pena de retirar da Lei Complementar nº 123/06 sua própria razão de existir – isto é, o incentivo às empresas de menor porte financeiro.

Vale, então, a seguinte indagação: até que ponto a exigibilidade de débitos de valor irrisório pode dar azo à aplicação da regra prevista no art. 30 da Lei Complementar nº 123/06?

Inicialmente, é importante investigar se seria possível se extrair um critério jurídico para definição do que seria “irrisório”. Embora não se possa definir o termo com precisão, fato é que alguns referenciais podem nos ajudar a elucidar a abrangência do que se considera insignificante para fins do Direito Tributário.

Os arts. 20, § 2º, da Lei nº 10.522/00 e 1º, I, da Portaria MF nº 75/12 definem, por exemplo, pisos para inscrição de débitos na Dívida Ativa da União e ajuizamento de Executivos fiscais – R$1.000,00 e R$20.000,00, respectivamente.

Ou seja, quando a extensão da lesão financeira ao Erário não ultrapassa tais valores, a própria legislação impede a atuação da Administração, dispensando a reparação imediata dos cofres públicos, pois, concretamente, não se justifica, inclusive sob o ponto de vista da análise econômica da discussão, a punição do contribuinte.

Segundo Leandro Paulsen[2], “(…) não se justifica a punição do agente quando o legislador, em face da pequena dimensão da lesão, dispensa a própria reparação civil, no caso a cobrança do tributo que tenha deixado de ser pago e da multa de ofício imposta pela infração cometida. É o que se costuma designar, em matéria penal, por ‘princípio da insignificância’” (Grifos nossos).

Além disso, o STJ já definiu, em sede de Recurso Repetitivo (Recurso Especial nº 1.709.029/MG), que os limites estabelecidos pela Lei nº 10.522/00 e pela Portaria MF nº 75/12 também devem ser observados na persecução de crimes contra a ordem tributária.

Dessa forma, se o valor de R$20.000,00 não justifica o ajuizamento de Execuções Fiscais ou até mesmo a persecução criminal em caso de descaminho, não seria demais adotá-lo como parâmetro para o que seria considerado irrisório ou insignificante em matéria tributária.

Estabelecida esta premissa, passa-se a analisar exclusão das sociedades empresárias brasileiras da sistemática do Regime do Simples Nacional em decorrência de débito irrisório exigível e a relação deste ato com os princípios a que está sujeita a Administração.

Como sabemos, a Administração está vinculada à finalidade da norma, na dimensão mais potente do Princípio da Legalidade, sob pena de nulidade de seus atos por “desvio de poder”.

O art. 1º da Lei Complementar nº 123/06, por sua vez, revela que a finalidade da criação do Simples Nacional foi promover e dar contornos concretos ao valor que inspirou a redação do art. 179 da Constituição, segundo o qual “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.”.

Nesse diapasão, trazemos à lume o comentário do professor Humberto Ávila sobre a finalidade da Lei que instituiu o Regime em estudo:

O caso escolhido, e aqui descrito nos seus elementos essenciais, é o relativo à instituição do sistema integrado de pagamento de impostos e contribuições das microempresas e empresas de pequeno porte denominado de ‘Simples’. O legislador criou um mecanismo diferenciado de pagamento de tributos federais por meio do qual as microempresas e as empresas de pequeno porte pagariam menos e de modo mais simplificado. (…) Isso significa que a lei, para atingir determinada finalidade (estimular o desenvolvimento do pequeno empresário), escolheu uma medida de comparação (tamanho ou porte), aferindo-a por meio de um elemento indicativo (receita bruta anual).[3]

Assim, a exclusão de uma sociedade do Simples Nacional em razão da exigibilidade de débito irrisório, o que não raras vezes resulta na falência ou insolvência do contribuinte, vai de óbvio encontro à finalidade da Lei, atingido de forma diametralmente oposta a principal pretensão do legislador.

Isso sem falar que a adoção de medida tão extremada para a punição de pequenos empresários por infração de baixíssimo potencial lesivo, além de atentar contra os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade – como já pontuado em precedentes dos Tribunais Regionais Federais[4] -, nos parece violar também a função social da empresa, que, para Fábio Ulhôa Coelho, viria a ser a capacidade da sociedade de “gerar empregos, tributos e riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico, social e cultural da comunidade em que atua, de sua região ou país”[5].

Diante de todo o exposto, podemos concluir que a exclusão de microempresas e empresas de pequeno porte do Regime do Simples Nacional por uma lesão fiscal insignificante/irrisória não deve ser considerada juridicamente válida, sendo, portanto, passível de revisão pelo Poder Judiciário.

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[1] https://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/novas-regras-do-simples-nacional-sao-complexas-para-pequenas-empresas-11012018

[2] Paulsen, Leandro. Curso de direito tributário: completo, 6. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 427.

[3] ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária: 3ª ed. – São Paulo, Malheiros Editores, 2015, pp. 39/40.

[4] Neste sentido: TRF2: AC nº 0000462-80.2013.4.02.5117, Rel.: Des. Luiz Antônio Soares, 4ª T. E., J.: 09/03/15, DJ.: 11/03/15, TRF2: AC nº 0001922-39.2012.4.02.5117, Rel.: Des. Luiz Antônio Soares, 4ª T. E., J.: 09/03/15, DJ.: 12/03/15, TRF4: AC nº 5024230-49.2013.404.7200, Rel.: Des. Luciane Amaral Münch, 2ª T., J.: 26/08/14, TRF4: AC nº 5007651-68.2018.4.04.7000, Rel.: Des. Roger Raupp Rios, 1ª T., J.: 10/04/2019, TRF4: AC nº 5001463-66.2017.4.04.7009, Rel.: Roger Raupp Rios, 1ª T., J.: 08/02/18.

[5] COELHO, Fábio Ulhôa. Curso de direito comercial, volume 1: direito de empresa. 20. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.
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Por: JOÃO PEDRO QUINTANILHA REZENDE, Advogado, Pós-Graduado em Direito Tributário pelo IBET e em Planejamento Tributário Estratégico pela PUC/RJ; VANESSA PERLINGEIRO, Advogada, Pós-Graduanda em Direito Tributário pelo IBET; e VICTOR MARTINEZ – Graduando em Direito pela UFRJ.

Fonte: JOTA.