Responsabilidade de pessoas meramente “interessadas” no fato tributável é ilegal

Os alunos de Direito Tributário, quando têm o primeiro contato com a matéria nos cursos de graduação em Direito, não raro experimentam uma sensação de dèjá vu. Obrigação, crédito, pagamento, repetição do indébito, decadência, prescrição, compensação, remissão, dação em pagamento… Tudo isso remete à disciplina de Obrigações, e a institutos por eles já estudados. Mas o professor logo deve fazer a ressalva de que, no Direito Tributário, o credor detém a tríplice função de elaborar a regra que disciplina a relação obrigacional, regulamentá-la e aplicá-la e, no caso de surgirem conflitos, resolvê-los de maneira definitiva. Em nenhum outro ramo há tanta concentração, que chega mesmo a tornar menos jurídico o vínculo obrigacional, aproximando-o de uma relação meramente de poder (e assim foi durante grande parte da História), não fossem alguns institutos surgidos para tentar dar-lhe ares de juridicidade: separação de poderes e, como sua consequência direta, legalidade.

Essa é a razão pela qual a relação obrigacional tributária é disciplinada pela lei, situada em contornos constitucionalmente delineados, e não pela vontade das partes, ou por atos infralegais. Daí todas as demais diferenças, marcantes, entre o Direito Tributário e o Direito das Obrigações, a afastar aquele dèjá vu inicial.

Mas o Direito, como realidade institucional que é, depende da crença intersubjetiva em sua existência, e na convicção de sua importância, para subsistir; o que não ocorre com realidades brutas como montanhas, oceanos e estrelas. Por isso é importante preservá-lo de eventuais tentativas de amesquinhamento, as quais não raro aparecem revestidas de uma aparência de legalidade, e cercadas de alegadas boas intenções. Se nos convencerem de que ele não existe mais, ele pode realmente não existir mais.

Uma das mais recentes dessas tentativas atende pelo nome de “Parecer Cosit 4”, editado em 10 de dezembro de 2018, no qual se examinam e respondem questões, com força normativa para as autoridades da administração tributária federal, relacionadas à responsabilidade tributária de terceiros, notadamente no tocante a: (i) grupos econômicos “irregulares”; (ii) planejamentos tributários “abusivos”; (iii) prática de ilícitos tributários. O parecer tem diversos aspectos que merecem análise detalhada, mas por questões de espaço neste artigo serão colhidas apenas algumas.

Partindo de uma leitura particular dos artigos 123 e 124, inciso I, do CTN, o parecer conclui que terceiros podem ser responsabilizados por dívidas tributárias quando tenham “interesse comum” na “situação vinculada ao fato jurídico tributário, que pode ser tanto o ato lícito que gerou a obrigação tributária, como o ilícito que a desfigurou.” Na sequência, a partir de quem se considera ter “interesse” comum na situação “vinculada” ao fato gerador, conclui pela possibilidade de se incluírem no polo passivo da obrigação diversas pessoas, físicas e jurídicas, além daquelas legalmente indicadas como tal.

O parecer procura fazer ponderações, a sugerir que o entendimento das autoridades fazendárias, antes de sua edição, era ainda mais expansivo da responsabilidade tributária. A nova orientação, assim, seria uma equilibrada recomendação de respeito ao Direito. E de fato: antes dela, chegou-se a responsabilizar pessoas apenas por serem da mesma família ou terem o mesmo sobrenome, o que denotaria o tal “interesse comum”, o que o parecer, aparentemente, insinua não ser possível.

Para sugerir o afastamento de tais entendimentos mais radicais, no parecer consta, por exemplo, que a “mera assessoria ou consultoria técnica” não teria “o condão de imputar a responsabilidade solidária”. Mas logo em seguida pondera: “Salvo na hipótese de cometimento doloso, comissivo ou omissivo, mas consciente, do ato ilícito.”

Não se esclarece, porém, quando se pode entender que um contador ou um advogado comete, de forma comissiva ou omissiva, mas consciente, um ilícito que o torna responsável pelos tributos devidos pela empresa que assessora.

Advogados e contadores podem, então, responder por terem sugerido um planejamento tributário que o Fisco, depois, considerou “abusivo”? Terão de pagar os tributos que a empresa elidiu? O mesmo ocorrerá em relação a quem, diante de orientação dada por um colega, sugerindo o tal planejamento, apenas silenciou? Deveriam esses profissionais, para afastar sua responsabilidade tributária, se insurgir contra tudo o que considerem suspeito, e correr para comunicar as autoridades? Note-se que a ressalva termina por neutralizar a parte inicial do parecer, tornando apenas aparente a apontada “redução dos excessos” anteriores.

Outro ponto em que o parecer sugere respeitar os dispositivos legais que diz estar interpretando, mas fica só na sugestão mesmo, é aquele no qual afirma que não é todo grupo econômico que enseja a responsabilidade tributária, mas apenas o grupo econômico “irregular”. Até aí, pura aplicação do Direito Civil, e das regras, nele constantes, que versam sobre desconsideração da personalidade jurídica, sobre abuso, simulação, fraude à lei etc. O problema surge quando se verificam as hipóteses que o parecer entende serem de grupo econômico “irregular” ou de “abuso” da personalidade jurídica, para ele configurado sempre que “se desrespeita a autonomia patrimonial e operacional das pessoas jurídicas mediante direção única (“grupo econômico irregular”)”.

Ou seja, aponta-se, no parecer, que a existência de uma direção única implica, por si só, desrespeito às autonomias, tornando irregular o grupo. Entretanto, é a direção única exatamente o que caracteriza um grupo econômico enquanto tal, o que significa dizer que, para o parecer, todos eles podem ser considerados “irregulares”.

Para reforçar essa conclusão, diante da evidente distinção de personalidades jurídicas, ainda que sujeitas a um mesmo centro decisório, o aludido parecer invoca o artigo 123 do CTN, o qual nada tem a ver com o tema. Segundo esse dispositivo, que apenas reflete o óbvio, a lei define quem é contribuinte, e quem é responsável tributário. Cabe a ela tratar de todos os elementos da norma tributária, antecedente e consequente. Inclusive do polo passivo da obrigação ali prevista. Daí porque convenções particulares não podem modificar esse polo passivo, tendo natureza ex lege a obrigação. Referidas convenções têm validade, e eficácia, entre as partes, que pactuam, por exemplo, que uma pagará os tributos devidos pela outra. Mas o Fisco nada tem com essa avença. Caberá a ele exigir o tributo daquele a quem a lei atribui a responsabilidade, o que nada tem a ver com desconsideração da personalidade jurídica.

Por outras palavras, é equivocado extrair do artigo 123 do CTN uma autorização para o Fisco desconsiderar um contrato ou um estatuto social, que não é uma “convenção particular relativa à responsabilidade pelo pagamento de tributos”. O Fisco não pode desconsiderar tais instrumentos para alcançar quaisquer dos sócios neles constantes, pois a criação de uma sociedade comercial não consiste na “modificação” da responsabilidade pelo pagamento de um tributo, mas na própria constituição de uma pessoa jurídica. A prevalecer tal despropósito, pessoas jurídicas não terão mais existência para o Direito Tributário, podendo o Fisco desconsiderá-las para alcançar quem quiser, supostamente amparado no artigo 123 do CTN. O despropósito dispensa considerações adicionais, e já foi inclusive rechaçado pelo STF, em outro contexto, mas por fundamentos que calham inteiramente aqui, quando se decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 13 da Lei 8.620/92 (RE 562.276).

Mas o ponto mais relevante diz respeito ao sentido e ao alcance do próprio artigo 124 do CTN, que não é uma regra sobre atribuição de responsabilidade ou de sujeição passiva, mas sobre o modo de ser de uma responsabilidade já decorrente de outras disposições do Código (artigos 128 e parágrafos. do CTN). Se dois ou mais sujeitos já são contribuintes, ou já são responsáveis tributários, nos termos dos artigos 128 a 135 do CTN, ou por expressa disposição de lei específica, sua responsabilidade será solidária, e não subsidiária, quando tiverem interesse comum na situação que configura o fato gerador.

Quando forem, por exemplo, todos proprietários de um mesmo bem imóvel, ocupando a condição de contribuintes do IPTU, sua responsabilidade será solidária por força do artigo 124, I, do CTN. Ou, se duas ou mais pessoas são responsáveis por terem vinculação ao fato gerador, e por a lei as ter assim indicado, com amparo no artigo 128 do CTN, a solidariedade estará presente se a lei assim dispuser, nos moldes do artigo 124, II, do CTN. Mas será a lei – sempre ela! – que definirá quem será sujeito passivo, contribuinte ou responsável – da obrigação tributária, para que, depois, incida o artigo 124 para definir essa responsabilidade como sendo do tipo “solidária”. Não a autoridade, com base em quem acha que tem “interesse” em uma situação vinculada ao fato gerador.

Aliás, além do desrespeito à legalidade, o parecer viola o próprio artigo 124, I, do CTN, que diz estar interpretando. Com efeito, mesmo que dele se pudesse extrair a permissão de responsabilização sem lei que a estabeleça, ela só poderia ser imputada a quem tivesse “interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal” (CTN, artigo 124, I), o que não abrange pessoas interessadas em, como consta do Parecer COSIT 4/2018, “situação vinculada ao fato jurídico tributário, que pode ser tanto o ato lícito que gerou a obrigação tributária, como o ilícito que a desfigurou.”

“Situação que constitui o fato” é algo muito diferente de – e muito mais restrito que – “situação vinculada ao fato”, sendo a última expressão abrangente de tudo o que se relaciona ao fato, e não apenas alusiva a ele próprio. Por outro lado, “interesse comum” não é o mesmo que interesse coincidente, convergente ou complementar. Têm interesse comum pessoas que praticam, juntas, o mesmo ato, com o mesmo propósito. Coproprietários de um bem imóvel têm interesse em sua propriedade. Mas comprador e vendedor, em um contrato de compra e venda, não têm interesse comum; são interesses antagônicos, que se complementam.

O mesmo pode ser dito de assessores e consultores de empresas, ainda que tenham conhecimento de supostos ilícitos e se omitam a respeito; e de pessoas jurídicas que se beneficiam de um mesmo planejamento tributário, nele ocupando posições diversas. Do contrário, a depender de como a expressão seja entendida, todas as pessoas de uma família teriam “interesse comum” no êxito financeiro umas das outras. Afinal, de uma forma ou de outra, o parente rico poderá ajudar os familiares menos abastados. Empregados terão também interesse em que a empresa na qual trabalham lucre cada vez mais, para assim lhes poder pagar melhores salários. E os sócios, então, com tais lucros poderão receber dividendos. Melhor: os brasileiros, todos, ganham com o crescimento da economia, tendo interesse comum em sua maior pujança.

Chegar-se-á, assim, precisamente nas situações exageradas que o parecer, supostamente, teria esclarecido não serem possíveis, como as de bloquear todos os bens de pessoas de uma mesma família, ou dotadas do mesmo sobrenome, o que não raras vezes ocorreu em um passado recente.

A lei já não será mais necessária à definição de quem é devedor de tributos, retornando-se ao período em que tudo isso ficava a critério da autoridade tributária, e do soberano ao qual ela servia. Espera-se que as instituições construídas para mitigar os efeitos da tríplice função, destinadas a que o tributo não seja fruto apenas da vontade do governante, funcionem para conferir ao Judiciário a independência necessária para reconhecer isso.

Do contrário, o difícil não será explicar aos alunos de graduação a diferença entre o Direito Tributário e o Direito das Obrigações, que ficará ainda mais evidente. Complicado será convencê-los de que o Direito Tributário ainda é um ramo do Direito.

 

Fonte: Revista Consultor Jurídico