O objetivo da regulamentação do investimento-anjo foi mitigar os perversos efeitos da responsabilidade dispersiva no Brasil.
Em 2016, a Lei Geral das Pequenas e Médias Empresas (Lei Complementar nº 123/03 – LC 123) ganhou um novo artigo para regulamentar o chamado “investimento-anjo”[1].
O objetivo, contido na própria regra, era “incentivar as atividades de inovação e os investimentos produtivos”. A leitura do caput e dos vários parágrafos do art. 61-A não deixa dúvida de que o que se buscou foi mitigar os perversos efeitos da responsabilidade dispersiva que se disseminou no Brasil.
Logo no início, afirma-se que no caso do investimento-anjo haverá “aporte de capital, que não integrará o capital social da empresa”. No §3º destaca-se a exclusiva responsabilidade dos “sócios regulares, em seu nome individual”. O §4º diz claramente que o investidor-anjo não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, e que também a ele não se aplica a desconsideração da personalidade jurídica.
Como temos feito há alguns anos, criamos incontáveis entraves burocráticos e tornamos a vida das empresas e dos empresários um mar de insegurança jurídica, para depois criar leis que tentam apaziguar essa situação. Por exemplo: como nosso sistema tributário é inacreditavelmente complexo, criamos o lucro presumido, o SIMPLES Nacional, a tributação sobre o faturamento… Como o Judiciário insiste em decisões particulares que espalham responsabilidade para onde há presumivelmente algum dinheiro, nos vemos diante da necessidade de criar uma figura legal que procure aliviar o cenário de desestímulo de novos negócios e investimentos. Especialmente no caso das startups do mundo do venture capital, isso é particularmente importante, pois são negócios com alto risco de não dar certo.
Mas, afinal, qual a natureza jurídica desse investimento?
No §4º, I, do art. 61-A está prescrito que “o investidor-anjo não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou voto na administração da empresa”. Essa disposição é condizente com o caput, no qual se afirma que o aporte de capital não integra o capital social. É também coerente com o objetivo da lei, que foi mitigar o principal risco de se tornar sócio: ser responsabilizado por dívidas da pessoa jurídica. Em alguns trechos, a legislação utiliza o termo “contrato de participação” para se referir ao acordo entre as partes. Se, na essência e na forma, não se trata de aquisição de participação societária, como contabilizar esse aporte? Dado o registro contábil, como tratar a remuneração e o desinvestimento para fins de tributação?
Dado que a legislação afirmou não se tratar de capital social, não poderia ser registrado em contas patrimoniais, ou seja, no Patrimônio Líquido (PL). Restou, portanto, apenas o Passivo. Dado que se trata de investimento mínimo de 2 anos, o correto seria fazer o registro como Passivo Não-Circulante. Neste sentido, como ficaria a tributação da remuneração, da alienação do investimento e do desinvestimento?
Há duas diretrizes para a qualificação jurídico-tributária da remuneração: (i) o investidor-anjo será remunerado nos termos do contrato de participação pelo prazo máximo de 5 anos (art. 61-A, §4º, III); e (ii) sua remuneração não poderá exceder a 50% dos lucros da empresa em cada período (imagine-se que se trata de período anual, embora a lei não mencione – art. 61-A, §6º). Não houve equiparação dessa remuneração aos dividendos, como ocorre com as sociedades em conta de participação (SCP), antigo negócio jurídico também regulado por contrato de participação. Com base nisso, coube à Receita Federal fazer sua interpretação por meio da Instrução Normativa RFB nº 1.719/17 (IN).
De acordo com o art. 5º da IN, a tributação será a mesma dos rendimentos de renda fixa: entre 22,5% e 15%, a depender do prazo do contrato de participação – quanto mais longo, menor a alíquota. Essa interpretação está de acordo com a remuneração (juros) de uma dívida de longo prazo (passivo circulante). Não está, entretanto, compatível com a natureza do negócio, pois por ser um investimento de alto risco (venture capital), em geral não há garantia de devolução do principal. Neste sentido, a remuneração estaria mais próxima à renda variável que à renda fixa. Além disso, quando se trata de remuneração baseada em lucros, não deveria haver tributação, pois os lucros já foram tributados pela pessoa jurídica. Embora essa isenção seja aplicada formalmente apenas aos dividendos, a lógica deveria ser a mesma: uma vez tributados exclusivamente na pessoa jurídica, os lucros não seriam mais tributados quando de sua distribuição[2]. No caso da remuneração há, portanto, argumentos que justificam o tratamento tributário diferenciado, a despeito da classificação contábil (dívida e não patrimônio/capital social).
A alienação da participação e o desinvestimento (resgate do valor do aporte), embora apurados como ganho de capital (diferença positiva entre o valor da alienação ou resgate e o valor do aporte), não serão tributados com as alíquotas progressivas regulares[3], mas às mesmas alíquotas regressivas acima citadas. Do ponto de vista contábil, a alienação da participação apenas alterará o destinatário dos pagamentos (credor) e não a natureza da conta (ressalvados ajustes diferentes entre as partes e que modifique as características do investimento-anjo).
O desinvestimento também não altera as características iniciais do investimento-anjo. O desinvestimento ou o “resgate” parcial ou total implicará na baixa do passivo, tendo como contrapartida o caixa (ou outra conta de ativo, no caso de pagamento usando-se outros bens que não o dinheiro). Nestas situações não há incompatibilidade entre os negócios jurídicos e o registro contábil, pois a tributação do ganho de capital leva em consideração a perspectiva do vendedor (investidor) e não da empresa (investida).
Do ponto de vista da pessoa jurídica, a quitação de um passivo (total ou parcial) só terá impacto tributário caso ocorra um perdão da dívida. Aí sim, ao invés de haver ganho para o investidor, há um ganho para a pessoa jurídica. A IN não trata essa situação, cabendo interpretá-la de acordo com o regime tributário da investida. Como se trata sempre de micro e pequenas empresas por exigência da própria LC 123, dificilmente teremos uma situação de apuração do lucro pelo método do lucro real. No lucro presumido ou no Simples Nacional, é muito provável que esse perdão de dívida não venha a ser tributado, pois em geral essas empresas apuram seus resultados pelo regime de caixa. No caso do perdão de dívida não há dinheiro entrando na empresa e o ganho só se verifica quando os resultados são apurados pelo regime de competência (há baixa de um passivo sem contrapartida no ativo). No caso do Simples Nacional, ainda que os resultados sejam apurados pelo regime de competência, o Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) está incluído da apuração geral única e consolidada, calculada conforme o faturamento da empresa. Não existe, neste caso, exceção que submeta esse eventual ganho a uma tributação separada[4].
É… era para ser simples, mas insistimos em achar que as leis tem poderes sobrenaturais para alterar a realidade e, ainda, esquecemos que quanto mais exceções e regimes diferenciados, mas complexidade, ambiguidade e insegurança jurídica. Bastava o IFRS para nos divertir nessa coluna…
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[1] Art. 61-A. Para incentivar as atividades de inovação e os investimentos produtivos, a sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte, nos termos desta Lei Complementar, poderá admitir o aporte de capital, que não integrará o capital social da empresa.
- 1º As finalidades de fomento a inovação e investimentos produtivos deverão constar do contrato de participação, com vigência não superior a sete anos.
- 2º O aporte de capital poderá ser realizado por pessoa física ou por pessoa jurídica, denominadas investidor-anjo.
- 3º A atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente por sócios regulares, em seu nome individual e sob sua exclusiva responsabilidade.
- 4º O investidor-anjo:
I – não será considerado sócio nem terá qualquer direito a gerência ou voto na administração da empresa;
II – não responderá por qualquer dívida da empresa, inclusive em recuperação judicial, não se aplicando a ele o art. 50da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil;
III – será remunerado por seus aportes, nos termos do contrato de participação, pelo prazo máximo de cinco anos.
- 5º Para fins de enquadramento da sociedade como microempresa ou empresa de pequeno porte, os valores de capital aportado não são considerados receitas da sociedade.
- 6º Ao final de cada período, o investidor-anjo fará jus à remuneração correspondente aos resultados distribuídos conforme contrato de participação, não superior a 50% (cinquenta por cento) dos lucros da sociedade enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte.
- 7º O investidor-anjo somente poderá exercer o direito de resgate depois de decorridos, no mínimo, dois anos do aporte de capital, ou prazo superior estabelecido no contrato de participação, e seus haveres serão pagos na forma do art.1.031 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, não podendo ultrapassar o valor investido devidamente corrigido.
- 8º O disposto no § 7º deste artigo não impede a transferência da titularidade do aporte para terceiros.
- 9º A transferência da titularidade do aporte para terceiro alheio à sociedade dependerá do consentimento dos sócios, salvo estipulação contratual expressa em contrário.
- 10. O Ministério da Fazenda poderá regulamentar a tributação sobre retirada do capital investido.
Art. 61-B. A emissão e a titularidade de aportes especiais não impedem a fruição do Simples Nacional.
Art. 61-C. Caso os sócios decidam pela venda da empresa, o investidor-anjo terá direito de preferência na aquisição, bem como direito de venda conjunta da titularidade do aporte de capital, nos mesmos termos e condições que forem ofertados aos sócios regulares.
Art. 61-D. Os fundos de investimento poderão aportar capital como investidores-anjos em microempresas e empresas de pequeno porte.
[2] Cf. artigos 3º e 10 da Lei nº 9.249/95, a técnica de arrecadação do imposto de renda corporativo adotada pelo Brasil é cobrar uma alíquota alta, mas apenas da pessoa jurídica. Ao adotar alíquotas altas para o lucro corporativo (34%, somando-se 25% de IR e 9% de CSLL no caso do lucro real e do lucro presumido), concentra-se a cobrança do imposto de renda quando da apuração dos lucros pela pessoa jurídica, isentando-se os dividendos (lucros distribuídos). No SIMPLES as alíquotas são muito menores, mas os dividendos, de qualquer modo, não foram excepcionados.
[3] Entre 15% e 22,5% a depender do valor do ganho (até R$ 5.000.000 e acima de R$ 30.000.000), conforme art. 1º da Lei nº 13.259/16.
[4] As exceções constam do art. 13, §1º, da LC 123/03 e restringem-se aos ganhos auferidos em aplicações financeiras, ganhos de capital na alienação de bens do ativo permanente e imposto de renda na fonte (nos pagamentos a terceiros).
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Por: ELISEU MARTINS, Livre-docente pela FEA-USP; Ex-Diretor da CVM e Professor Emérito da Universidade de São Paulo; e VANESSA RAHAL CANADO, Doutora e mestra em direito tributário pela PUC/SP. Professora da FGV DIREITO SP. Coordenadora do GEDEC – Grupo de Estudos em Direito e Contabilidade. Diretora do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal). Advogada em São Paulo.
Fonte: JOTA.