O CRÉDITO DE ICMS NAS TRANSFERÊNCIAS ENTRE ESTABELECIMENTOS DO MESMO CONTRIBUINTE

 

Como tem sido amplamente divulgado no meio jurídico, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento acerca da “incidência ou não do ICMS nas transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte”, relativo ao case ARE 1255885 RG/MS, em sede de repercussão geral, para revisitar o conceito de “circulação de mercadorias”, previsto no artigo 155, inciso II, da Carta Maior de 1988 e ratificar a não incidência do imposto sobre as transferências de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, em operação interna ou interestadual.

Esse julgamento do STF, na realidade, reflete o posicionamento histórico do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, fixado na Sumula 166 e no Recurso Repetitivo nº 1.125.133, no sentido de que na movimentação de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não há a passagem da mercadoria de uma etapa a outra do ciclo de comercialização do produto, ou melhor, não há troca de titularidade do bem, mas mera movimentação física.

Com efeito, superada a não incidência do ICMS nas movimentações meramente físicas que ocorrem entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, pela ausência de circulação econômica, cumpre-nos enfrentar um novo questionamento, a saber: mantém-se o crédito de ICMS, quando da transferência entre estabelecimentos irmãos, pelo fato de tal operação ser configurada como uma saída “isenta” ou “não tributada”, a teor das limitações impostas pelo artigo 155, §2º, inciso II, letras “a” e “b”, da CF/88 e artigos 20 e 21, ambos da Lei Kandir?

Apressamo-nos em afirmar que não! E isso porque a transferência entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, enquanto ato meramente físico, não se subsome às normas de exceção veiculadas pela CF/88 e LC 87/96, justamente pelo mesmo argumento que serviu de sustentáculo para o afastamento do ICMS na operação de transferência, qual seja: inexistência de “saída” jurídica, com circulação mercantil da mercadoria movimentada.

A bem da verdade, em termos contábeis, na transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte não ocorre uma operação patrimonial, tanto que as remessas gozam de CFOP’ específicos (5.150 a 5.156), mais do que isso, também não afetam o resultado patrimonial da pessoa jurídica.

Bem por isso, embora a novel necessidade de estorno, aparentemente, esteja alinhada com os artigos 155, § 2º, II, “a”, CF/88 e 20 e 21 da LC 87/96, no sentido de que o sujeito passivo deverá efetuar o estorno do crédito tomado, no caso da “saída” subsequente ser isenta ou não tributada, não soa possível a ilação de que a simples movimentação física dos bens, sem qualquer ato de comércio, configure hipótese de estorno.

Nada obstante, para que possamos explicar tal entendimento, vale uma consideração acerca do aspecto material da regra-matriz de incidência do imposto estadual.

Pois bem. É certo que a LC 87/96, embora reconheça que a incidência do imposto se dá sobre “operações relativas à circulação de mercadorias” (artigo 2º, I), elege como critério temporal (momento em que se considera ocorrida a operação) a saída de mercadoria do estabelecimento. Ainda escorada no chamado princípio da autonomia dos estabelecimentos, o artigo 12, I, de tal diploma frisa que tal saída será tributada mesmo que a mercadoria seja destinada a outro estabelecimento do mesmo titular, no que é seguida pelas legislações estaduais que instituíram o imposto.

Nesse passo, cumpre explorar o conteúdo semântico da expressão “operação relativa à circulação de mercadoria”, empregada no artigo 155, II, da Constituição Federal, como feito pelo STF e STJ.

Embora tal norma se destine a conferir competência impositiva em matéria de ICMS, infere-se daí a materialidade possível do imposto, donde se deduz que a lei que veicular sua regra-matriz (ou sua interpretação) só será válida se atender aos limites semânticos dos termos empregados na norma constitucional.

No caso do ICMS, o aspecto material do imposto é composto pela expressão “operação relativa à circulação de mercadorias”. Caso não se verifique um de tais pressupostos, não há de se falar em incidência do tributo. Mais precisamente, nos interessa saber o termo “circulação”, a fim de entender se toda e qualquer circulação (física ou jurídica) está apta a desencadear a incidência do imposto.

Fácil notar que na mera “transferência”, não há transferência jurídica, é dizer, não há transferência de titularidade do bem, porquanto continua pertencer ao patrimônio (estão integralizados como tal) do contribuinte. E se não há transferência de titularidade jurídica, não há, por conseguinte, fato gerador do ICMS.

É evidente, assim, que somente uma operação entendida como “negócio jurídico que implica transferência de titularidade” estará sujeita à incidência do ICMS. Qualquer outra hipótese que fuja a essa regra não poderá ensejar a cobrança do imposto, pelo simples fato de que escapa à competência impositiva dos estados e Distrito Federal.

Basicamente, se não houve operação que implique na circulação de mercadoria, não se configura a possibilidade de incidência do ICMS. Tal entendimento implica em reconhecer que o Direito Tributário, direito de sobreposição que é, deve respeitar os conceitos empregados no Direito Privado (artigo 110 do CTN), no sentido de que apenas em negócios jurídicos de compra e venda de mercadorias é que poderá haver cobrança do imposto.

Vale ressaltar que o entendimento encampado no ARE 1255885, pelo STF, como já afirmamos inicialmente, adota as mesmas premissas já apresentadas na Sumula nº 166 e no Recurso Repetitivo 1125133 do STJ. Vejamos um trecho do voto do ministro Dias Toffoli, fazendo referência ao RE nº 158.834/SP, de relatoria do ministro Sepúlveda Pertence, a fim de demonstrar que o entendimento sobre o tema é perene na Corte Suprema:

“Na verdade, a correlação da incidência do ICMS com a saída de mercadoria do estabelecimento decorrente de negócio jurídico representa diretriz jurisprudencial consolidada e originada sob a égide das ordens constitucionais pretéritas, conforme se depreende das seguintes razões argumentativas do ministro Sepúlveda Pertence, expostas no RE nº 158.834/SP, Tribunal Pleno, relator sua excelência, redator para o acórdão o ministro Marco Aurélio, DJ de 5/9/03: ‘Firmou-se na jurisprudência desta Corte, sob a vigência do regime constitucional anterior, o entendimento de que não basta, para a incidência do ICM, o simples deslocamento físico da mercadoria, sendo necessário que a saída decorra de negócio jurídico ou operação econômica. Com base nessa orientação, foram declarados inconstitucionais, por ofensa ao artigo 23, II, da Carta de 1969, dispositivos legais editados por diversas unidades federadas, que previam a incidência do ICM no deslocamento de matéria-prima do estabelecimento produtor para o industrial da mesma empresa. Assim se decidiu nas Representações 1.181-PA, Mayer, RTJ 113/28; 1.292-MS, Rezek, RTJ 118/49; 1.355-PB, Oscar Corrêa, RTJ 120/1.001; e 1.394-AL, Falcão, RTJ 122/932, relativas aos chamados casos da ‘cana própria’.”

Ora, se a jurisprudência nacional já está consolidada no sentido de que o substantivo feminino “circulação”, existente no aspecto material do antecedente normativo da regra matriz de incidência tributária do ICMS, refere-se à transferência de mercadoria de um titular para o outro, por força da prática de um negócio, dessume-se que o outro substantivo feminino “saída”, a que se refere o artigo 21, inciso I, da LC 87/96, também deve ser interpretado como uma operação relativa a circulação jurídica, devidamente caracterizada como uma operação de mercancia com mudança da titularidade do bem.

Nessa linha, depurando-se as normas de estorno relativas às saídas isentas ou não tributadas, conclui-se que, ocorrendo uma saída de mercadoria, devidamente caracterizada como uma circulação jurídica e não meramente física, não sujeita à incidência do imposto por força dos fenômenos da isenção ou não incidência, deverá o contribuinte estornar o crédito tomado na operação anterior, sob pena de violação ao artigo 155, § 2º, II, CF/88, uma vez que não haverá transferência do ônus financeiro para a cadeia subsequente.

Situação diversa, entretanto, surge na transferência entre estabelecimento do mesmo titular, hipótese na qual inexiste uma “saída” com circulação jurídica da mercadoria, tanto que tal operação não reflete no resultado da pessoa jurídica, isso equivale a dizer que não se trata de saída com conteúdo econômico, ou ainda, como elo na cadeia de incidência do ICMS, mas de mero transbordo entre estabelecimentos da mesma pessoa jurídica.

Cabe pergunta, nesse ponto: teria a “não incidência” decorrente de tais saídas físicas o condão de anular o crédito relativo às operações anteriores?

Entendemos que não. Reiteramos que não é qualquer “saída” que faz incidir a regra de mutilação do crédito de ICMS, mas somente a “saída” caracterizada como uma circulação jurídica de mercadoria, com mudança de titularidade e não sujeita à incidência do imposto, o que não ocorre na situação posta à análise.

Noutras palavras, apenas situações que, em tese, se revestem do conceito de operação relativa à circulação de mercadoria, mas, por algum motivo, escapam à incidência do imposto (imunidade ou isenção), é que estariam a exigir o estorno do crédito relativo à operação anterior.

No mesmo sentido, não havendo circulação jurídica, não pode o Estado alegar estar configurada hipótese de não-incidência para fins de exceção ao princípio da não cumulatividade, devendo ser preservado o direito de crédito para os contribuintes que remeteram os bens em transferência.

Nesse sentido, vale citar a recente decisão do STF no RE 1141756, de relatoria do ministro Marco Aurélio, quando se firmou a seguinte tese:

“Observadas as balizas da Lei Complementar nº 87/1996, é constitucional o creditamento de Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias — ICMS cobrado na entrada, por prestadora de serviço de telefonia móvel, considerado aparelho celular posteriormente cedido, mediante comodato”.

Entendeu a Suprema Corte, na ocasião, que as operações de comodato, por não implicarem transferência de titularidade e, portanto, não se encontrarem, ainda que potencialmente, no âmbito de incidência do ICMS, conforme Súmula 547, não poderiam figurar como “não incidência” para fins de exceção ao princípio da não cumulatividade. Destaca-se, para ressaltar o raciocínio, o seguinte trecho do voto condutor:

“(…) Ausente operação de saída, descabe cogitar de situação reveladora de exoneração tributária – isenção ou não-incidência -, a fim de impedir-se o aproveitamento dos créditos, conforme as balizas versadas no preceito”.

Embora a decisão em questão tenha se referido ao comodato, como fato jurídico que não se enquadra no conceito de não-incidência para fins de exceção ao princípio da não cumulatividade, diversos outros fatos jurídicos quadram nesse conceito, como a remessa para armazenamento, demonstração etc.

Em todas as hipóteses acima, não há se falar em circulação jurídica, e, por conseguinte, não há incidência da regra-matriz do ICMS. Isso, contudo, não desencadeia a regra de exceção ao princípio da não cumulatividade. Quer nos parecer que apenas a não incidência como fenômeno normativo, é dizer, a isenção e a imunidade, é que afastariam o direito de crédito relativo às operações anteriores. Interpretação diversa implicaria consequências ilógicas e não razoáveis, como, por exemplo, exigir-se o estorno do crédito de um bem do ativo ou mercadoria que saíram fisicamente do estabelecimento para conserto ou reparo.

Em arremate de raciocínio, considerando o entendimento firmado pelo STF nos autos do ARE 1255885, em consonância com o posicionamento reiterado do STJ, é muito provável que os fiscos estaduais, após o contribuinte conseguir, via medida judicial, afastar a incidência do ICMS nas operações de transferência (interna e/ou interestadual), passem a exigir o estorno do crédito do imposto, em razão das transferências, sob o argumento de que se trata de uma “saída não tributada”.

No entanto, em vista do entendimento firmado no e do RE 1141756, temos a convicção de que somente uma “saída jurídica”, com troca da propriedade do bem movimentado (circulação jurídica), quando albergada por isenção ou imunidade, pode ser enquadrada na regra de exceção fixada no artigo 155, §2º, inciso II, da CF/88 e artigos 20 e 21, da LC 87/96.

Por: Maicow Leão Fernandes, especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Direito Empresarial pela FGV, professor seminarista do IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e sócio de Brasil Salomão e Matthes Advocacia; e Gabriel Magalhães Borges Prata, LLM em Direito Tributário pela Queen Mary, Universidade de Londres, mestre pela PUC/SP, professor conferencista do IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e sócio de Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

Fonte: Revista Consultor Jurídico.